Ao longo destes cinco números de A Palo Seco, podemos afirmar que o GeFeLit, grupo que se ocupa da fronteira entre o literário e o filosófico, enxerga essa área como um espaço franqueável, sedutor, rico em possibilidades expressivas, mas, ao mesmo tempo, irredutível como problema intelectual. Mesmo assim, e talvez porque nesta época de especialistas já não mais esperamos achar soluções para grandes questões, o grupo continua jogando nesse teatro de operações onde se bicam a ficção e a ciência das verdades últimas.
Em nossa primeira publicação, cinco anos atrás, escolhemos pensar a literatura e a filosofia em torno da questão do espelho. Sugestivo limite entre a realidade cotidiana e a cópia invertida dessa realidade que seduziu figuras como Machado e Guimarães; fronteira entre o verdadeiro e o enganoso aproveitada, como em Swift e em Borges, como metáfora para lançar sombras de dúvida sobre isso que chamamos real, o espelho foi o primeiro pretexto escolhido pelo GeFeLit, como dizia no prólogo da primeira publicação, “não para converter, mas para conversar”.
Em 2011 tivemos a honra de homenagear Benedito Nunes, fonte de inspiração para o grupo. Através desse intelectual, pudemos reafirmar, e por que não legitimar, a ideia de que o linde entre filosofia e literatura é franqueável, ainda que inapreensível.
Desta vez, como se a intenção fosse acentuar a ideia de fronteira, o número V de A Palo Seco vem em dose dupla, devido a grande quantidade de valiosíssimos trabalhos com que professores de diversas universidades do Brasil e da Europa nos honraram, por ocasião do nosso terceiro colóquio de março de 2013.
Esta primeira seção contém quatro estudos da antiguidade greco-latina e três dedicados a escritores contemporâneos. Em todos eles se abordam as diversas formas do cômico, que vão do humor reparador ao humor zombeteiro ou degradante.
Jacyntho Lins Brandão nos põe em contato com um “obscuro cristão”, Hérmias, que viveu nos primeiros séculos da nossa era e elaborou uma crítica aguda dos filósofos gregos porque o puxavam, ora para a natureza, ora para uma substância diferente, ou faziam ele se tornar água, ou ar ou fogo, sem nunca se pôr de acordo entre eles. A particularidade deste pensador estaria no fato de recorrer ao cômico como ferramenta analítica, coisa que poderá parecer estranho do ponto de vista do que esperamos hoje de um filósofo, mas que era absolutamente lícito na Antiguidade.
Já Adriane da Silva Duarte centra seu artigo em Vida de Esopo, obra escrita entre os séculos II e III, que narra a ascensão social do fabulista grego de escravo a conselheiro disputado pelos reis. O romance realiza um contraste entre a feiura do filósofo, fonte de derrisão, e a sabedoria que lhe proporciona a ascensão. A posição mais elevada, por outra parte, permitirá a Esopo rir de seus semelhantes, colocando-se a par de duas tradições opostas: a dos filósofos motivo do escárnio, como Sócrates, e a daqueles que zombam dos outros pensadores, como Demócrito e Diógenes.
A recepção dos comediógrafos gregos Aristófanes e Menandro na Roma do final da República e começo do Império é o tema do artigo de Luciene Lages. A escolha da época se justifica por se tratar de um momento de considerável produção crítica e literária. A comédia de costumes de Menandro teria atraído mais a atenção do público que as de Aristófanes, de conteúdo político sobre a realidade ateniense, ou seja, palco de uma problemática própria de um passado remoto. Já para o publico especializado, não pouca seria a influência de Aristóteles nesta escolha, visto que o filósofo grego preferia também o riso domesticador, riso reparador dos desequilíbrios, ao humor zombeteiro de Aristófanes, que deixava um sabor pessimista no espectador.
José Amarante analisa o efeito cômico nos prólogos das comédias de Plauto. Dirigidas ao grande público, aproveitavam o prólogo como forma de facilitar o entendimento do enredo a seguir. Entretanto, além desta função didática, o prólogo já recorria ao tom cômico como forma de ganhar a simpatia do público. Amarante aborda a construção desses prólogos e elenca recursos do clássico latino como a repetição de palavras para referir-se a fatos diferentes, o fazer explícitas as diferenças entre o trágico e o cômico numa sorte de metateatro ou romper os limites da ilusão cênica, ao refletir ou comicizar o fato mesmo de encenar.
Jacqueline Ramos introduz a questão do “distanciamento” como uma das condições de realização do cômico, a partir de obras de Machado de Assis, Guimarães Rosa e Clarice Lispector. O distanciamento cômico, já considerado por Aristóteles, seria retomado mais tarde por autores modernos. Assim, Frye veria a distância entre o herói que se isola (trágico) e aquele que se incorpora (cômico) e Bergson carac- terizará o afastamento como insensibilidade ou distanciamento emocional.
Fabian Piñeyro a partir de duas tradições cômicas • aquela iniciada por Aristóteles que resgata o lado inteligente do humor, desde que não fira, e a forma de humor carnavalesco ou dionisíaco, de origem popular, que procura rebaixar o objeto do riso • percorre o uso do humor na obra crítica de Borges e mostra que o argentino eleva o humor carnavalesco à categoria de arma perfeita, aquela que é ao mesmo tempo mortal e irrefutável.
Alba Tinoco aborda o jogo entre o trágico e o cômico que se dá na obra Dona Flor e seus dois maridos. Dados os critérios que separam o trágico e o cômico, como a maior ou menor elevação social, o desenlace feliz ou infeliz e a natureza das reações que o autor provoca no público e considerando que o trágico e o cômico seriam dois pontos de vista diferentes para o mesmo drama existencial, Alba mostra que Dona Flor contém um elemento clássico da tragédia, como o triângulo amoroso, mas tudo ganha um “sabor de comédia”, com a não punição da mulher e a união feliz dos adúlteros.
Fabian Piñeyro