Sobre as relações Filosofia e Literatura
Pode-se afirmar que as relações entre Filosofia e Literatura são históricas. O estudo e a problematização da natureza do literário pertenceu por muito tempo ao campo da Filosofia e não só da Literatura. Lembremos que já estava em Platão e sua discriminação metafísica da Literatura, assentada na distinção entre discursos verdadeiros (diegesis) e ficcionais (mimese); ou em sentido inverso, em Hegel, a poesia enquanto um discurso não-filosófico, mas verdadeiro. Os exemplos poderiam se multiplicar, já que, provocativa, a Literatura, assim como outras manifestações artísticas, sempre esteve presente no horizonte das preocupações filosóficas, sendo objeto de estudo da Estética concebida por Baumgarten como ciência do sensível, por exemplo. Além do fato de essa interlocução ser, historicamente, tema de investigação, há ainda os filósofos que também são poetas e escritores (Goethe, Voltaire, Schlegel, Diderot, Novalis, Sartre, Simone de Beauvoir, Nietzsche, Camus etc.) e temos, ainda, o uso filosófico de ficções como experiências de pensamento e outros dispositivos ficcionais, tais como o fez filósofos na Antiguidade como Platão, e nos séculos XVII e XVIII filósofos como Descartes, Rousseau, Condillac, por exemplo.
Filosofia e filósofos são igualmente temas da Literatura. Já na Antiguidade, Sócrates foi ridicularizado por Aristófanes como personagem de sua comédia As Nuvens. A Literatura cumpre também esse papel de recepção das ideias filosóficas, seja colocando-as em devir no mundo ficcional (como nos romances românticos que incorporam o idealismo e a perspectiva subjetiva), seja discutindo-as (veja-se o “humanitismo” de Machado Assis, que satiriza o Positivismo), além de escritores que se dedicaram à ficção com conteúdos explicitamente filosóficos como Umberto Eco, Milan Kundera, Dostoiévsk, Shakespeare, Hermann Hesse, entre outros. A inter-relação entre as áreas é de tal ordem que se percebe nos movimentos históricos das diversas escolas artísticas os movimentos das ideias filosóficas. Seja como reconfiguração de temas ou na construção de perspectivas, a arte em geral foi sempre sensível aos saberes promovidos pela Filosofia. Além é claro da influência da Literatura como âmbito de intuição e antecipação de questões filosóficas em autores como Sófocles, Flaubert, Proust, Kafka, Beckett, Joyce.
Até o século XIX, a teoria e a crítica literárias estiveram circunscritas ao âmbito da Filosofia, e também ao da historiografia, então em franco desenvolvimento. No século XX, o advento da Linguística promoveu um certo afastamento entre a Filosofia e os estudos literários, que divisaram no estudo intrínseco do texto a possibilidade do específico literário, empreitada a que se lançaram o formalismo russo, o estruturalismo e o new criticismo norte-americano, correntes que se contrapunham à primazia da história, que assentava raízes na tradição estética hegeliana. Nesse período se produziu extenso instrumental analítico para o enfrentamento do texto, cujo resultado apontou para a necessidade de interlocução com outras áreas do saber dados os implicantes na construção dos sentidos. As grandes áreas que acabam compondo essa interlocução são principalmente a Sociologia, com a abordagem Literatura e sociedade desenvolvida por Antônio Candido, e a História, que nunca deixou de estar presente nos estudos literários em abordagens como a de Hayden White com Metahistória: a imaginação histórica do século XIX e Teoria literária e escrita da História, ou mesmo Paul Ricouer em Tempo e Narrativa em que evidencia aproximações entre a temporalidade da historiografia e do discurso literário.
A crítica de cunho filosófico, embora sem a grande repercussão das anteriores, será também evocada no enfrentamento do literário. Os vínculos com a Filosofia nunca se romperam totalmente: a Poética de Aristóteles, considerada texto fundador dos estudos literários, continua a ser lida e reinterpretada; assim como a Teoria do romance de Lukács, para ficarmos em dois exemplos antológicos. Ainda, fenomenologia e hermenêutica fornecem bases teóricas para uma tradição crítica a que podemos alinhar, entre outros, Benedito Nunes, Alfredo Bosi, Eduardo Coutinho. Trata-se de uma linhagem de estudos que exercita um modo diverso de leitura do texto literário ao atentar para as correlações entre Filosofia e Literatura, abrindo novas sendas interpretativas ao conjugar também as conquistas linguísticas em seu fazer crítico.